a-linha-narrativa nº1: "tecer por um texto"



Começou com a escultura da Durga. Ela tem oito braços e cada um deles possui uma habilidade específica. Foi arquitetada pelos deuses hindus para lutar contra Mahishasura, o demônio búfalo responsável por espalhar a barbárie no mundo. Como tudo nas histórias que compõem a mitologia das religiões, Durga é você, sou eu, somos nós e a interpretação do livro sagrado fica a gosto do freguês.

Ao olhar a obra apita na memória a ilustração de um livro da infância "Suriléia, mãe monstrinha" (1984, escrito por Lia Zatz e ilustrado pela Eva Furnari). A protagonista é a Durga cotidiana, uma mulher comum que de repente se transforma em uma criatura com duas cabeças e muitos braços para conseguir dar conta dos filhos, do trabalho e de todas as outras tarefas.

Voltemos à Durga original. Imagina que cada braço representa um setor da vida: a família, a saúde, o amor conjugal, a amizade, os objetivos pessoais, o lazer, intelecto e o trabalho. Como um jogador de tênis, um braço sempre estará mais exercitado do que o outro.

Imagina agora que uma linha emana de cada uma das oito mãos, como na roupa do Homem-Aranha. São as nossas linhas narrativas. Quando nascemos elas se fixam como um urdume de tear manual. Colocamos-as separadamente nas navetes e jogamos em vaivém. No começo da vida o fio da família predomina, depois chegam as linhas das amizades, dos estudos, dos objetivos pessoais, do amor conjugal, do trabalho. Dia-a-dia o tecido ganha uma camada.

E é difícil a coreografia do entra-e-sai das navetes nesse tear vital estarem cadenciadas como uma partitura de valsa. As linhas narrativas se movimentam com diferentes trajetórias, como um eletrocardiograma saudável, os gráficos de movimentação das ações na bolsa de valores, o fluxo de tráfego aéreo no mundo, ou qualquer infográfico capaz de ilustrar e mensurar a realidade que nos cerca porque já nascemos costurados a um Sistema.

Trabalho é a linha que costuma correr frenética. Ao longo do tempo ela pode ganhar densidade de uma corrente, brusca e inflexível. É comum ela inverter a ordem natural das coisas e fazer dos nossos braços suas marionetes, boicotando voluntariamente o movimento das outras linhas narrativas. Ao longo do percurso a gramatura dos fios oscila.

Saúde, família, amor, amizade e objetivos pessoais podem rarear no desenho da trama ao longo do tempo. Podem até ficar tênues em alguns momentos, mas nunca (nunca) invisíveis porque elas compõe a estrutura inaugural do urdume. Quando negligenciadas na coreografia das navetes, essas linhas se infiltram e se enroscam de qualquer maneira. Por um tempo é possível até seguir sem lhes dar muita importância, contudo, elas vão criando nós indissolúveis e, de repente, é preciso desfazer o tecido e recomeçar.

A pandemia nos sugere observar com quais as linhas narrativas vínhamos preenchemos o nosso tear, quais foram os nós deixados pelo caminho, e, sobretudo, que somos apenas retalhos de um Sistema muito maior. Estamos atados uns aos outros.

A ideia do texto surgiu a partir da visita ao museu Rubin e ganhou corpo nos encontros com o artista Alexandre Heberte. Enviei esse texto para ele que me devolveu a carta abaixo.

 

A teia de aranha tecida pelo polvo, oito braços, cada um com universo mental independente.
Que teia será dada?
Tecer por um texto. Escrita escuta

O fio vai e volta. As mãos ainda desengonçadas com a nova maneira de lidar com a agulha e fio, tenta acertar. Passos ritmados da escuta e movimento, daquilo que lhe foi orientado fazer: têxtil manual, tecelagem. Furar tela, estruturar urdume ou fio de sustentação e sobre eles abstrair, pintar tela com os fios. Traçar, preencher, compor, dar forma, como se explica isso?

Para quê? Por que se tece?
Resposta: para sair da zona de conforto. Para atiçar a mente, voltar a realidade do presente que se tece duíte a duíte (Duíte é o termo utilizado pelos tecelões, diz sobre a carreira formada, do fio vai e volta pelo urdume, esse ir e vir entre a cala, abertura dos fios paralelos do urdume, fios pares e impares que se intercalam, a trama se completa).

Qualquer resposta ainda é insuficiente, por que a trama está em aberta.
O presente como experiência do urdir, tramar, ouvir respiração do processo, o mais próximo de uma atenção plena, coração e mente. O ato da arte-manual e a práxis do depois, do fato vivido e sentido e percebido e.... o que se faz?

Prender urdume no papelão. Criar espaço contorno para fazer tecido, renda, uma trama experimental. Tecido pronto, soltar ele do suporte.

A liberdade de fazer uma estrutura ordenada, figurativa ou abstrata, linda ou caótica, com ou sem sentido do seu uso, simplesmente por fazer; as mãos dançam, buscam entendimento de realizar um comando que vem da mente.... Você precisa entrelaçar ou dar nós. Você precisa prender fios que vão estar delimitados pelo espaço de trabalho proposto. Parece simples, parece fácil, ou nada simples ou nada fácil. De cada um, jeito próprio que será assimilado. Para ganhar tempo.

Quando se tece a trama, decorre muito tempo, é muito lento, repetitivo, ponto a ponto. No que a mente divaga, sobre o que se fala, como se pensa? Se revela o quanto presente, ou quanto consciente se distrai com as camadas sucessivas que se apresentam nas horas atarefadas.
Se se apresentam, que diz essas memórias que emergem a superfície?

Sem propósito claro ou definido você veio tecer. Aceitou minha proposta de viver experiência da trama texto. Quando se trama a razão e o pensamento, cedem lugar para as entre linhas, o de vir: textura, relevo, densidade, tensão, cores, misturas, elasticidade. A mente pensa que sabe fazer, as mãos indagam: como fazer? A mente quer uma coisa, as mãos fazem outra. Mente e mãos. O toque e o fluxo de energia.

Seu texto me fez pensar no polvo, com seus tentáculos independentes, parece que cada um deles tem um sistema mental independente. Agem de própria vontade.

De repente você constrói e engendra uma teia que trata da vida como um todo e partes tão afastadas de si. Éramos todos independentes sem darmos devida atenção para tanta interdependência.

A vida: amor, trabalho, amigos, família, política, estudo, saúde, lazer. Para cada parte, pulsões desenlaçadas, combinações frágeis, que se tramam com o universo do outro tal qual. O quebra-cabeça das minhas partes se relacionam como o quebra cabeça do outro.

Quando se tece as partes se unem e parecem fazer mais sentido. A trama ordena a mente. Ou talvez simplesmente se amplie repertório para tratar das questões que se borda na superfície.

Eu particularmente tenho que trabalhar uma escrita mais objetiva, para não viajar com mercúrio e netuno em peixes. Seu texto faz isso por mim, cria analogias que indicam um entre tantos caminhos possíveis, pois a verdade é essa: depende de quem a aceita e endossa.

Tantas lives e indagações de como será depois da pandemia: moda, design, arte, shows, futebol, carnaval, bares, festas, trabalho, vida!!! Trama desconhecida. Corpo afetado, cabeça, mente, tudo em rebuliço. Calma, respira. Faça bolo, faça arte, escreva e estude.

O grande segredo disso tudo que está acontecendo agora é ser ético, moralmente visível de atitudes que se relacionam em equilíbrio com a natureza. Humana e linda, trabalhando para dar sentido a todas as partes, que relaxadamente ou tensionadas ao máximo, e mesmo assim unidas, se dão conta de saúde, vida e amor.
Coragem de inventar um novo jeito de fazer as coisas, de expressar sentimentos.
Trama em aberto, escrita escuta.
Beijos e carinho.

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