a cidade tecida

post originalmente publicado na plataforma do projeto Melissa Meio-Fio

Com o projeto Trama São Paulo, Alexandre Heberte e seu tear desbravaram 33 regiões da capital paulista. Um dos três selecionados para a segunda etapa do Melissa Meio-Fio, eleito pelos colegas Refletores, desde janeiro o tecelão percorre a capital se deslocando exclusivamente por meio de transporte público. De Perus (extremo norte) a Parelheiros (extremo sul) ele cumpriu o mesmo ritual. Chegava devagar, arrastando seu carrinho, pedia licença aos locais, montava o tear, sentava e tecia. O que aconteceu ao longo da confecção de cada tessitura ecoou no desenho final da trama produzida. As 33 tramas poderão ser vistas no espaço Melissa Meio-Fio na SP-Arte, entre os dias 6 e 9 de abril. Diante dos visitantes da feira o artista repetirá a performance. "Será uma celebração do processo", afirma.



A capital paulista é seu porto-seguro há treze anos. Vindo de Juazeiro do Norte, Ceará, o artista, de 44 anos, trouxe bagagem cultural (e espiritual), além de uma miniatura da estátua de seu conterrâneo mais famoso: o Padre Cícero. A imagem original fica no alto de uma colina e atrai milhares de romeiros anualmente. No apartamento de Alexandre no centro de São Paulo o mini "padinho" faz companhia para Iemanjá, São Jorge e outras divindades. Citando uma frase atribuída ao padroeiro ele começou a entrevista a seguir: "Em cada sala um altar, em cada quintal um ofício".

Como o tear entrou na sua vida?

Em Juazeiro há uma tradição muito forte de trabalhos manuais - palha, latão, madeira. Quando ia para a praia ficava entre as redes dos pescadores e a renda das rendeiras. Minha mãe costurava as nossas roupas (dele e dos cinco irmãos) na minha infância. Já estava em São Paulo quando fui à casa de um amigo cuja sala era totalmente ocupada por um tear enorme. Ele perguntou se eu queria tecer. Saí de lá com um tecido e comprei um tear. Ele se tornou meu companheiro enquanto me adaptava à cidade.



Como você transformou em tecelão?

Cursava um técnico de turismo e arrumei um trabalho em uma empresa que oferecia leitura de tarô por telefone. Aprendi a ler tarô aos 15 anos! Depois de milhares de horas de atendimento perguntei à minha chefe as perspectivas de crescimento na empresa. A resposta foi desanimadora, então decidi sair de lá e fazer xales e cachecóis. Os vendia para os meus colegas de classe e nas lojas da rua São Caetano (a lendária "rua das noivas") onde havia morado. Também fiz um blog (Peixes em Peixes) no qual postava fotos das peças. Me descobriram! Entrei em grupos de artesãos experientes nas redes sociais e vieram os primeiros convites para expor meu trabalho. Uma destas exposições me levou a Silvia Ribeiro. Ela me ensinou a manusear o tear de padronagem, e assim, em 2012, fiz cem metros de tecido para o desfile do João Pimenta - e a coisa engrenou.




E a ideia para o Trama São Paulo?

Em Juazeiro trabalhei na campanha de erradicação do trabalho infantil e conheci tanto a zona urbana quanto a zona rural com a palma da minha mão. Ampliei o meu mapa cognitivo do Juazeiro. O projeto Trama São Paulo nasceu dessa lembrança, mas também da problemática: o que faz alguém ir de São Miguel Paulista ao Capão Redondo, por exemplo, se não for por um amor, por um trabalho ou pela família? Pensei nas razões que motivam nossa locomoção pela cidade. Tecer aqui em casa é maravilhoso, mas é a minha zona de conforto. Sair da cápsula me estimula a criar de outra maneira. O tear foi uma grande desculpa para desbravar São Paulo sem receio.

Cada região de São Paulo é enorme. Como elegeu os lugares?

Foram horas viajando no Google Maps e no Google Earth, mas também foquei muito no que me era caro. A Augusta, por exemplo, foi a rua que mais passei na vida. Ia da Luz à Paulista à pé. Esse era o meu tesão quando cheguei porque respirava a cidade.


E as cores dos fios que levaria para cada lugar?

Elegi cores básicas. São Paulo nasce de sítios e fazendas. A primeira cor eleita foi o verde, como gênesis; o marrom porque essa cidade enriquece com as lavouras de café; aí entra o ouro, para simbolizar riqueza. O branco e o vermelho são cores da bandeira do Estado. Os tons coadjuvantes foram muito pincelados. Em Perus, por exemplo, nos anos 40 e 50 havia uma fábrica de cimento que construiu metade do país. Levei [para tecer lá] fios na cor de calcário. Ora o tecido foi feito racionalmente, ora pela a emoção do processo.

Quais foram as experiências no percurso do projeto?

É complicado eleger a melhor saída. Em Parelheiros descobri a Cachoeira do Jamil. Na (avenida) Ipiranga com a São João teci no Carnaval, em meio ao Bloco Tarado Ni Você. A multidão foi se aglomerando e uma hora fiz o tear de porta-estandarte. Na Quarta-Feira de Cinzas fui para o Sítio da Ressaca (risos). Na Lapa as pessoas passavam, olhavam e logo saíam porque a vida delas urgia. O Capão Redondo é famoso pela violência. Você chega lá se depara com outra realidade. Juntou uma multidão curiosa ao meu redor. No final me perguntaram: "quando você volta?". No Jardim Romano pedi para as crianças me ajudarem a enrolar os fios nas navetes. As conversas duraram de um minuto a uma hora. Não sofri nenhum tipo de assédio. As pessoas têm necessidade de conversar, de serem ouvidas e respeitam a arte.




Quais são suas expectativas em relação à SP-Arte?

Papai e mamãe sempre me ensinaram: "você tem que saber entrar e sair dos lugares". Quando for 1º de Abril completo 9 meses no Melissa Meio-Fio. Uma gestação. Será um novo espaço a desbravar. Eu penso que a performance na SP-Arte será um grande ritual. Eu vou viver. Não criei projeções. Vou estar cercado dos meus fios, dos meus tecidos. Lá eu vejo como uma grande celebração deste grande ciclo. E os tecidos que serão produzidos lá vão refletir isso. Tenho meditado diariamente. Vou tentar dar o melhor de mim, como tenho feito.




Você vem de um lugar emblemático para a religião católica. Você é religioso?

Aos domingos acordava cedinho para ir à missa das crianças. Minha família é muito católica, mas tinha um avô espírita. Na adolescência fui buscar respostas no espiritismo, no budismo, na umbanda. Acredito que somei o melhor de todas as religiões. Gosto muito da ideia de ter um contato imediato com Deus e com as forças da natureza. Exercito a minha espiritualidade a partir da busca de amadurecimento e equilíbrio, me perguntando de quando em quando: "o que é que eu estou fazendo aqui?"; "como eu posso mudar este mundo?". O tear é meu guia para a encontrar respostas.

texto: Laura Artigas

fotos: vtão


Comentários