Acaso


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Nas feiras de antiguidades fotografias são vendidas. Na Benedito Calixto e na do Bixiga em São Paulo predominam as de paisagem com as margens serrilhadas. Feiras e mercados são sempre um bom jeito de começar a entender uma cidade desconhecida.

Na feira Tristan Narvaja, aos domingos em Montevidéu no Uruguai, havia uma banquinha montada em cima de um tecido de tonalidade rosada esmaecido pelo tempo. Estava localizada em um setor "B" da feira, meio improvisado. Ofertava fotos aos montes, máquinas  e panfletos de casas fotográficas. Estava ao lado de uma outra dedicada a vender bonecas com olhos de plástico encaixados - daquelas capazes de roubar uma noite de sono se encaradas no susto.

Diferente das feiras da capital paulista, nesta banquinha havia muitas fotos de pessoas e retratos de família, daqueles posados do lado de fora casa.  Por um momento foi tão aterrorizante quanto as vizinhas bonecas ver a história alheia descartada sem a menor curadoria em bacias de plástico e vendidas a cinquenta centavos cada. Por outro lado, meu otimismo sugeriu a possibilidade de coincidências felizes. Encontrar a foto de um antigo amor? Reaver seu álbum de família perdido? Desvendar um crime? Perguntei ao vendedor, um simpático senhor grisalho e gorducho que saboreava seu chimarrão se algo do tipo já havia passado. Ele respondeu simpático: "Nunca aconteceu. Pouca gente tem paciência com a vida alheia, menina", ensinou. Quando lembranças são o ganha-pão é preciso manter a frieza para conseguir negociar.

Ano passado conheci a "Kodak Girl". Sempre com sua câmera na mão, ela percorria diferentes cenários e seu figurino acompanhava as tendências do momento. Nosso encontro foi durante a exposição "Papeis Efêmeros da Fotografia" na Casa da Imagem em São Paulo. A mostra foi o resultado da pesquisa do professor Rubens Fernandes Júnior, publicada em um livro de mesmo nome.

A mocinha teve muitas caras. A empresa de fotografia investiu na imagem feminina para divulgar suas câmeras. A colecionadora norte-americana Martha Cooper, suspeita da intenção um tanto controversa. O mote era vender as câmeras pessoais, tão leves e de fácil manuseio "que até uma mulher poderia usar". As campanhas estimularam muitas donas de casa a se arriscarem nos cliques e registrarem a vida privada.

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A "Kodak Girl" me voltou à cabeça depois de assistir o documentário "A Fotografia Oculta de Vivian Maier" sobre a babá reconhecida postumamente como fotógrafa. O filme concorreu ao Oscar de melhor documentário.

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Ela nunca mostrou seu trabalho à ninguém. Nunca teve um relacionamento estável. Também não deixou herdeiros. Segundo os relatos dos filhos dos ex-patrões, Maier tinha uma personalidade bastante controversa. Ora carente e subserviente, ora arrogante e cruel. Era ousada. Tirou um ano sabático e deu a volta ao mundo. Seus negativos comprovaram sua passagem por São Paulo e pelo Rio de Janeiro, por exemplo. A qualidade de suas imagens foi comparada aos grandes da fotografia dos Estados Unidos como Diane Arbus (será que ela também foi influenciada pela "Kodak Girl"?).

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O trabalho de Vivian Maier só veio à tona graças a um jovem obstinado chamado John Maloof. Ele arrematou os arquivos por acaso em um leilão popular em Chicago e publicou algumas das imagens em seu flickr. Sucesso imediato!

Além de contar a história da babá, o filme também remonta as batalhas do guardião do trabalho de Maier para torná-lo público. As grandes instituições não se interessaram muito. Mesmo assim ele insistiu. O acervo está rodando o mundo. Em São Paulo ficou em exposição no Museu da Imagem e do Som.

Será que existem versões latinas de Vivian Maier entre as fotos do senhor uruguaio? E o que seria da vida sem a magia do acaso?


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