sobradinho

Na frente do prédio onde moro tem um brechó. Por lá comprei uma blusa e um vestido. Total: vinte reais. A arquitetura da casa é bem típica da região de Pinheiros, Zona Oeste de SP. Ou um dia foi. É um sobradinho implantado em um terreno retangular. A frente é recuada para abrigar um veículo. Há uma escada para levar ao piso superior do quartos e outra para o  inferior, do quintal.

A casa onde nasci, na mesma rua, tinha a disposição semelhante. Ela e toda sua vizinhança foram derrubadas há alguns anos. Uma árvore plantada pelo meu pai na calçada é o único resquício do antigo número 361. Ela vive à sombra de muro alto construído para escoltar dois prédios de alto padrão. Todos os apartamentos da dupla têm varandas amplas circundadas por vidros verdes. Quase todas foram fechadas e incorporadas a sala.

Dois terrenos vazios deixaram a casinha do brechó ilhada. Suas colegas de estilo foram a baixo do dia para a noite há uns dois anos. E o brechó na verdade é uma venda de caridade. Ele está instalado na sala de uma sede regional do Narcóticos Anônimos. O imóvel também serve de estada provisória para alguns dependentes em recuperação. Os artigos alí vendidos chegam de doações dos vizinhos e ajudam nas despesas do lugar.

“Mais um empreendimento com as grifes…”, diz a placa ao lado esquerdo da casinha. Um um tapume de metal vermelho esconde o espaço já tomado pelo mato. A crise econômica deve ter atrasado o levante dos edifícios. Ainda não está claro se subirão dois prédios, um de cada lado, ou se surgirá uma engenhoca para aproveitar os dois terrenos em uma mesma construção. Tenho um pouco de medo de imaginar esta segunda opção.

Desenho da série "São Paulo Infinita"©, da ilustradora Juliana Russo

Desenho da série “São Paulo Infinita”©, da ilustradora Juliana Russo

Em 2012 o escritor Inácio de Loyola Brandão publicou: “As Paredes caem, uma a uma, nas Ruas de Pinheiros” . Uma reflexão sobre a transformação da mesma rua em questão, onde ele mora há mais de duas décadas. Spoiler. Seu texto termina com a citação:

E os seres humanos que davam vida a todas essas coisas? Onde está, para onde foi toda essa gente que integrava meu universo afetivo? Que diabo de método de produção social desagradável, sempre assumindo formas novas, engolindo o passado e os que faziam parte dele! Eles não percebem – os sujeitos da transformação econômica – que agridem bruscamente a nossa intimidade afetiva quando renovam o ‘quartier’ e o mundo?

Nem toda casinha fofa tem valor histórico e precisa ficar de pé. A dinâmica da cidade muda. No entanto, a erupção de construções de mais de vinte andares deixou algumas regiões de São Paulo com aspecto de conjunto habitacional neoclássico de luxo, ou de vidro verde clean.

Em Pinheiros a padronização se manifesta no comércio. Há uma coleção de palavras em inglês distribuídas nas placas do bairro. “Pancake” (panqueca) anunciava o cardápio do food truck da rua Lisboa. Os estrangeirismos (há alguns nomes em francês também) sofrem concorrência forte dos títulos com a terminação “ria”. “Esmalteria”, “Cabelaria”, “Lasanheria”, etc. O limiar entre o cosmopolita e o clichê anda tênue.

Aquilo que comemos, as roupas que vestimos, os lugares onde vivemos são cada vez mais padronizados, porque a padronização é o preço que pagamos pelos preços que podemos pagar. Para a maior parte de nós, a vida decorre, monótona, como o tiquetaquear de um despertador. Habituamo-nos ao ritmo que nos é imposto pela nossa necessidade de subsistir. Ao fim de pouco tempo, começamos a gostar das nossas amarras. Escreveu Anthony Burgess, autor do livro “Laranja Mecânica”, no ensaio “A condição humana, no incômodo limite entre o bem e o mal”, de 1973. A padronização, no entanto, parece também atrair quem tem cacife para optar pela exclusividade e pela liberdade.

“O Futuro é Vintage” anunciou uma piada do vídeo “Mudança” do Porta do Fundos. A brincadeira faz algum sentido.

No livro “Cronologia da Moda” o retrô do futuro está anunciado no capítulo dos anos 2000. Ele reverencia as décadas do século XX amplamente divulgadas pela Prada, pela Louis Vuitton na era Marc Jacobs, pela Gucci e pelo Alexander McQueen. O garimpo e as descobertas de stylists e estilistas nas lojas vintages surgidas do acúmulo de quatro décadas de indústria de prêt-a-porter engrossam o caldo do passado. Em São Paulo o fenômeno vintage é recente e ainda pouco popular.

Se for pensar bem, não é preciso produzir mais nada. Seria ideal reciclar os materiais pré-existentes. Contudo, esta premissa ainda é utópica em escala global. A indústria e o design ainda prescindem de matérias-primas virgens.

Nas aulas de física aprendemos sobre a “mola ideal” e sua constante elástica. A energia potencial da contração é proporcional ao da extensão. A crise de hoje faz parar, refletir, repensar e, quem sabe, melhorar. Só o otimismo e a mão na massa salvam.

Alguns metros adiante do prédio onde moro a padaria da esquina é um oasis dos tempos analógicos. Divulga show do Roberto Leal no Clube Português. Não tem catraca, nem ficha de plástico com código de barras. A cobrança é na base do papelzinho e da caneta bic. Mantém a mesma decoração (e talvez a mesma garrafa de Dreher dentro de uma vitrine suspensa na parede do fundo).  Vanguardista na terminação “ria”, não perdeu o bonde da história. Diversificou os produtos e ganhou ares de mini mercado. Apostou em mesinhas na calçada e assumiu sua natural vocação de ponto de encontro. Mas nunca deixou de ser a referência de pão francês da região. A sensação de caminhar com pãozinho quentinho dentro da embalagem de papel bem próxima ao corpo é pura intimidade afetiva. O sobradinho resiste.

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