a arte abstrata do roteiro de não-ficção


No post "vamos falar sobre roteiro de não-ficção?" propus o roteirista como arquiteto do audiovisual, mas quando falamos de não-ficção podemos pensar no roteirista como um designer. Por isso o título deste artigo foi uma inspiração proposital à simpática série "The Abstract Art of Design" em cartaz na Netflix.

Como ensinou o documentarista Eduardo Coutinho, tem que dar a regra do jogo da sua linguagem narrativa logo nas primeiras composições de cenas. Por isso, é prudente alertar que a associação roteirista-designer que sugiro aqui está no campo da divagação e não da proposição. E tudo que o linkedin não precisa é de mais um título de cargo com nome em inglês ;). E a palavra design, tadinha, também anda meio malhada - "design de sobrancelhas" é o ápice. Também é bom dizer que esse post não tem embasamento no Design Fiction, que é uma outra parada, ligada à literatura de ficção científica, cyberpunk, a qual absolutamente não domino, mas tem uma galera legal estudando e acho que ainda ouviremos falar MUITO a respeito.

"The Abstract Art of Designer" T1E1 Christoph Niemann - Ilustração


Voltando para a série da Netflix. Tem um "design narrativo" bem estruturado. O ponto de partida foi uma pesquisa profunda sobre os personagens que permitiu criar dispositivos cênicos personalizados para cada habilidade. Como os motion graphics do Christoph Niemann, ilustrador da New Yorker na primeira temporada, as megaletras do tipógrafo Jonatahn Hoefler em um estúdio e a conversa telefônica entre a figurinista Ruth Carter e o diretor Spike Lee, na segunda temporada. Também teve muito planejamento de pós-produção para interação com o que é filmado live action. Ela é uma peça interessante de não-ficção porque tem um roteiro arrojado para criar um resultado imersivo no processo de criação dos designers retratados.


o conceito de design

Na primeira da aula da faculdade os jovens calouros ouvem o professor perguntar: "Alguém sabe o que é design?", como a maioria entrou lá por intuição e não por conhecimento prévio, em geral é o próprio professor que vai responder a questão após alguns momentos de silêncio sepulcral: "Design é a capacidade de resolver um problema" (acadêmicos, não me matem!).

Objetividade e simplicidade costumam ser os anseios de qualquer designer. Na cozinha o design brilha muito. O amassador de alho, o espremedor de limão, o moedor de pimenta... De tão eficiente e cotidiano o mecanismo de cada um desses objetos se tornou invisível porque promove a autonomia da experiência do usuário.

Design vêm de desígnio que pressupõe uma função. Ele se populariza com o processo industrial em larga escala no final do século XIX, início do XX. Nessa mesma época estava surgindo a fotografia e o cinema que permitiam "a reprodutibilidade técnica da arte" (Alô Walter Benjamin!). Anos mais tarde surgiu a TV, os canais de TV, o videocassete, o DVD, o youtube, a Netflix, e o smartphone, todos gritando por conteúdo audiovisual. A produção de conteúdo audiovisual hoje tem uma escala que o complemento "industrial" já não dá conta.

Com a popularização das telas e das plataformas de streaming o conteúdo audiovisual se proliferou, e para criar outra analogia, as produções de ficção especialmente parecem experimentar um fenômeno parecido com o do futebol. Além de técnicos, agora somos todos um pouco críticos de cinema. Sem demérito algum. Sinal que como o futebol, os filmes e séries também ganharam espaço cativo nas nossas vidas. Além disso, expressões antes restritas ao mundo dos redatores e dos roteiristas - storytelling, narrativa, jornada do herói, ponto de virada - foram incorporadas pelo mundo corporativo e pelo mainstream.


roteiro de não-ficção + design

Quando falamos de conteúdos de não-ficção a reação do público (parece que) ainda é mais visceral. Por se tratar da "realidade", o que geralmente sobressalta é o objeto, o fato ou a pessoa retratada em si e não o artifício narrativo usado para contar a história. Bem como não lembramos que o gosto da pimenta do reino que sentimos na comida foi obra de uma engenharia sutil de lâminas finas dentro de uma estrutura do moedor, o espectador leigo também não costuma notar a construção da história.

O "design narrativo" planejado na pré e na pós produção cria os heróis do Big Brother, os vilões do "De férias com o ex", os jargões dos apresentadores dos programas de variedade (tipo "Acorda, Menina" da Ana Maria Braga <3); e a sensação de o que você acabou de ver em um documentário como "Privacidade Hackeada" é uma verdade irrefutável (nesse caso, boto fé que seja mesmo).

Os projetos de não-ficção tem "a realidade" (com muitas aspas) como matéria prima, diferente de um roteiro de ficção a narrativa é criada em cima de uma demanda pré-existente, que podemos aqui chamar de "problema", pensando na lógica do design. Sendo assim, o roteirista de não-ficção tem achar as soluções para transformar "a realidade" em uma narrativa atraente e lógica, com um começo, meio e fim. Morando no Brasil atualmente, pensar em lógica para a realidade é um desafio e tanto.

O bom roteiro de não-ficção me parece ter esse efeito invisível do design. Ele te dá total autonomia para apenas saborear uma história - previamente - bem temperada. 

Comentários