Penélope #ficaemcasa



"Penélope e os pretendentes"​ John William Waterhouse (Museu: Aberdeen Art Gallery)

Encontrei a "A Odisseia de Penélope" da Margaret Atwood quando estava em busca de referências sobre a relação entre o tecer e a passagem do tempo (motivo no post anterior).

Antes de falar do livro é importante explicar quem é Penélope na fila do pão da Mitologia Greco-Romana. Ela foi a rainha de Ítaca, esposa de Ulisses (ou Odisseu) e, colocando no termos de hoje, foi um #ficaemcasa de 30 anos a espera do marido. Sua ausência começa na Guerra de Tróia e continua em um conjunto de missões impossíveis, entre as quais, matar um ciclope e se esquivar do canto das sereias. Ficou conhecida como a "Odisseia". O livro foi escrito por Homero uns 1000 anos Antes de Cristo e é a sequência da Ilíada. Este volume, por sua vez, relata a Guerra de Tróia, cujo desfecho foi o "presente de grego", o Cavalo de Tróia (também vírus de computador mitológico da antiguidade digital), uma estátua gigante com todo o exército dentro. Esta ideia genial deu a vitória da batalha à Grécia e foi arquitetada pelo marido da Penélope. Diferente do capitão do exército opositor, o troiano Aquiles, aquele do calcanhar, Ulisses é celebrado por sua astúcia e não por seu físico avantajado (arquétipos legíveis na vida e na arte). Helena foi a beldade responsável por desencadear essa Guerra. Ela era casada com Menelau, foi sequestrada por um loucamente apaixonado Páris e era a prima da Penélope. A Ilíada e a Odisseia eram tipo livros para inspirar "o mindset" dos jovens do seu tempo. Considerando o ponto de partida da Ilíada, uma lição é bem clara: cuidado com as mulheres, elas podem desencadear uma guerra.

Agora que todos perderam o fôlego, é a minha vez de fazer o relato.
Vou tecer minha própria narrativa.

M. Atwood. faz uma correção histórica e cria uma voz póstuma para Penélope:

Muita coisa é sussurrada nas cavernas escuras, nos prados,
e por vezes é duro saber se os sussurros vem dos outros
ou de dentro de nossa própria cabeça.
Uso a palavra cabeça no sentido figurado.
Aqui nos livramos das cabeças.


Não consigo que me compreendam,

não as pessoas do mundo de vocês,
do mundo dos corpos e das línguas e dos dedos;
na maior parte do tempo não tenho ouvintes,
não do seu lado do Rio.
Entre vocês, quem consegue captar facilmente um murmúrio perdido,
um grito solto, facilmente confunde minhas palavras
com o som da brisa nos juncos,
morcegos ao crepúsculo, pesadelos.

Sarcástica e sem a necessidade o filtro do mundo terreno (lembra o Bráz Cubas no clássico "Memórias Póstumas" de Machado de Assis), em sua visão a espera não foi nada de poética ou romântica. Como era uma mulher de posses a rainha teve um trabalho hercúleo para desviar dos chamados "pretendentes". Eles perambulavam ao redor da casa em busca de suas riquezas, do conforto da mansão com coluna grega e dos muitos escravos. Também teve que aguentar a sogra grosseira,

Quando eu tentava falar com ela, a velha nunca olhava para mim enquanto respondia,
dirigindo seus comentários a uma banco ou uma mesa.
Como convém nas conversas com os móveis,
seus comentários eram duros e cheios de farpas.

cuidar do filho recém nascido sozinha e do sogro moribundo. Foi para ele que Penélope teceu a mortalha. O prometido era: quando ela terminasse a peça se casaria novamente. Por isso ela adotou a estratégia de tecê-la de dia e desfazê-la à noite. Esse truque conferiu a essa figura mitológica o carimbo de "mulher inteligente". Atwood, no entanto, relaciona o faz-desfaz do tecido a um instinto de autopreservação da rainha. Pouco tem a ver com um suposto amor eterno a Ulisses.

Eu passava o dia trabalhando em meu tear, tecendo diligentemente enquanto dizia coisas como
"Esta mortalha seria mais apropriada para mim do que para Laertes, pois estou desconsolada e condenada pelos deuses a uma vida que é como a morte".
Mas de noite eu desfazia o que tecera,
para que a mortalha jamais fosse terminada.

Penélope póstuma tem uma índole bem longe de ser 100%. Sempre se referia a Helena com desprezo. Nitidamente se corroía de inveja.

Contive o desejo de afirmar que Helena deveria ficar presa num baú trancado num porão escuro, pois levava veneno entre as pernas.

Vale ressaltar que essas duas figuras moldaram arquétipos de personagens femininos presentes até hoje nas narrativas: Penélope "a inteligente" e Helena "a bonita".

Na estrutura do livro nota-se uma grande intimidade da escritora com textos da mitologia greco-romana. Ela intercala os capítulos entre a narração em primeira pessoa de Penélope e o coro das escravas "a voz da consciência", por exemplo:

Somos as escravas
Que vocês mataram
Que vocês trairam

Dançamos leves
Pés descalços no ar
No injusto balançar

Em "A Odisseia de Penélope" não há muitos detalhes sobre o figurino das personagens, contudo, em sua obra mais famosa "O Conto de Aia" ela pensou de antemão nas roupas, especialmente nas das Aias. Ela chegou a cogitar a possibilidade de ser estilista profissional. Até hoje ela faz croquis para os personagens dos seus livros. Revelou esse hábito em um encontro no ciclo de palestras "Fashion and Fiction" promovido pelo museu Victoria & Albert de Londres, onde também segredou uma peculiar adoração pelos vampiros e seu estilo - "são sensuais", e um desprezo total pelos zumbis.

PS: Arrisco dizer que as escritoras utilizam este recurso descritivo das roupas de forma mais hábil por terem a moda em seu léxico mais cotidiano. A escritora anglo-jamaicana Zadie Smith faz isso de maneira brilhante em seu livro "Ritmo Louco". Super recomendo. Aliás, ela mesma, Zadie, é um ícone de estilo e virou verbete neste livro aqui.

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