(*texto originalmente publicado na edição nº5 da Revista Urdume)
"O Ponto Firme" filme escrito e dirigido por Laura Artigas mostra o processo criativo do primeiro desfile de moda do projeto homônimo criado pelo estilista Gustavo Silvestre dentro de uma penitenciária em Guarulhos, SP
Um dos primeiros trabalhos em crochê que o estilista Gustavo Silvestre fez foi contornar a pulseira de um relógio analógico. A trama toda durou o caminhar dos ponteiros de uma decolagem em Recife, sua cidade natal, e um pouso em São Paulo, onde vive. Tecer refaz os acordos com o tempo. E se o tempo é o tambor de todos os ritmos, dentro de um presídio, sua batida é pesada e lenta.
O Projeto Ponto Firme apareceu nas páginas da 3ª edição da Urdume. Relembrando rapidamente: desde 2015 Gustavo é professor e dá aulas semanais de crochê aos sentenciados da Penitenciária Adriano Marrey. Nos conhecemos no mesmo ano nas reuniões semanais do GE (grupo maior que eu), grupo de estudos sobre processos criativos coordenado pela artista Karlla Girotto, e então sediado na Casa do Povo no Bom Retiro, SP. Em comum ele e eu tínhamos um histórico de trabalho no mundo da moda e um desgosto pelos rumos que essa indústria e sua respectiva imprensa estavam tomando. Em 2017 com o Projeto Ponto Firme bem consolidado dentro das atividades educacionais do presídio, Gustavo manifestou sua vontade de evoluir dos tapetinhos de banheiros e toalhinhas circulares para uma coleção de roupas. Perguntei se poderia assistir à uma aula. Fui e me encantei (o medo de entrar no presídio foi só na primeira vez). Na semana seguinte voltei com um querido amigo e sua câmera para fazer a primeira diária de filmagem. Os nove meses de gestação do primeiro desfile de moda do Projeto poderão ser vistos em breve no documentário "O Ponto Firme", produzido pela BR153 Filmes.
Eram cerca de 20 homens - uniformizados com calça cáqui e camiseta branca, média de idade 28 anos, cumprindo pena por tráfico de drogas, quase todos negros - crochetando pontos delicados com linhas muito (muito) coloridas. Uma pitada de realismo fantástico.
Boa parte do filme se passa na sala em que Gustavo ministra as aulas. Ele chega primeiro, dispõe as cadeiras de plástico brancas em um círculo. Os alunos vão entrando aos poucos e em grupos. Alguns deles chegam ansiosos para mostrar o resultado da lição de casa. Quem faz o curso ganha o aval para levar agulha e linha para a cela. "Professor, Professor", se escuta o tempo todo. Há uma fila de espera para frequentar as aulas. Entrou, não pode faltar. Cada 12 horas de curso é um dia a menos da sentença. "Glória Deus", observa o aluno Erick. É um espaço pequeno com janelas retangulares, estreitas, posicionadas no alto da parede e gradeadas. Às vezes algum passarinho desavisado aterrissa do lado de fora dá um alô e voa. O som do seu canto compete com o bater abrupto de portões, correntes deslizando, cadeados fechando, vozes masculinas ecoando e aviões subindo e descendo no Aeroporto Internacional de Guarulhos.
Tudo lá dentro é ocre, cinza."Quem vêm de fora traz a cor", resumiu Bruno. As linhas que o professor leva em malas gigantescas, pesadas e inspecionadas em máquinas de Raio-X são absurdamente coloridas. Nesse ambiente improvável as paredes foram envoltas com uma trama feita pelas muitas mãos cheias de tatuagem. Com combinações de cores inusitadas; ponto alto, baixo, pipoca e outras tramas feitas à mão "para preencher os vazios" da parede, explicou o mesmo Bruno. Uma instalação que faria bonito em uma sala exclusiva no Instituto Inhotim.
A inspiração para criar vem "da mente”. “Meu corpo está aprisionado, mas minha mente é livre”, explica o ex-aluno (atenção spoiler) e atual artesão, Thiago. "Das mentes" brotaram vestidos, "bombetas da Adidas", blusas, camisetas bordadas. "Tenha fé, porque até no lixão nasce flor", trecho da letra "Vidaloka" dos Racionais MC's foi o recado de Honorato em uma delas. Já os amigurumis são a especialidade de Fabiano. Batizou de "Confusão" um dos cachorrinhos crochetados. "Em três dias" fez um impressionante dragão vermelho, que convive com uma grande fauna em uma jaqueta, à lá Irmãos Campana. "Cada um faz o que se sente melhor", sintetiza Gustavo.
Enquanto fazem crochê e conversam em uma roda que oscila entre a placidez de antigas comadres e a excitação da turma do fundão da 5ª série. Comentam sobre o próprio preconceito: "pra mim crochê era coisa de senhora de idade", "nunca imaginei que ia fazer crochê na vida". Contam suas histórias, elas se passam antes de terem "caído". Onde moravam. "Bom Retiro", "Guarulhos", "Tatuapé", "Interlagos". O que gostavam de vestir. "Camisa polo vermelha", "bermuda azul", "bombeta da Adidas", "calça jeans", "tênis Nike". De quem estão com saudades. "Da mãe", "da mãe", "da mãe", "da filha que completou 15 anos", "dos irmãos", "da esposa", "da Bahia". Do pai, ninguém. Quanto tempo ainda têm alí: "quatro anos", "mês que vêm estou no semi aberto", "era para estar na rua faz tempo". Ou, o que vão fazer depois que ganharem a liberdade: "procurar o professor".
Há um senso comum que descreve o artista como uma pessoa agraciada com o dom da criatividade. Da união entre um professor dedicado e o tempo elástico de uma sentença judicial nasceram artistas. Nunca perguntei aos meninos do Gustavo os motivos que os fizeram estar alí. A linha narrativa começa daquela sala em diante.
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