Nas aulas de roteiro de cinema aprendemos que os filmes costumam ter dois pontos de virada. A estrutura clássica prevê, pensando em uma produção de uma hora e meia, um primeiro “plot” mais ou menos aos 15 minutos e o segundo aos quinze minutos finais, pontuando a escalada para a conclusão.
Como a vida real é sempre mais impressionante que a ficção, a História também tem seus “plots”. São os fatos marcantes que mudaram os rumos das coisas terrenas. Tipo: Revolução Francesa, Abolição da Escravidão, Atentados de 11 de Setembro, e por aí vai…
Em 1948, a modelo alemã Miriam Etz foi a primeira mulher a usar biquíni no Rio de Janeiro. A lenda urbana dá conta que alguns homens não conseguiram se conter e tiveram resolver seus impulsos vitais atrás da Pedra do Arpoador, tamanha foi a emoção de verem uma barriga desnuda em público pela primeira vez. Por ser estrangeira provavelmente nem percebeu o tamanho da revolução provocou. O Rio de Janeiro é a cidade referência do duas-peças no mundo. Tudo começou com um empurrãozinho daquele ato ingenuamente heróico.
No curso de Cool Hunting que ministro há dois anos na Escola Panamericana de Arte em São Paulo (#selfie), costumo fazer uma aula de retrospectiva do que foi cool através dos tempos. E gente cool costuma ser protagonista dos pontos de virada históricos e nem sempre sabe disso.
Este não era exatamente o caso de Gabrielle Chanel, trendsetter por excelência. Ela era consciente de seu superpoder. Suas inovações não foram aceitas logo de cara. Primeiro foram assimiladas por algumas mulheres mais ousadas do seu círculo social, até ganharem as massas. Inspirada em si mesma, ela traduziu em suas roupas a liberdade que as mulheres tanto almejavam (na época elas ainda estavam presas aos espartilhos). Interessante pensar que enquanto Chanel estava nos primórdios de sua marca na França, as sufragistas inglesas se manifestavam nas ruas de Londres exigindo seu direito ao voto.
A primeira cena do filme “Chanel e Stravinsky” reconstrói uma plateia reagindo a estreia de “A Sagração da Primavera” espetáculo de dança com música de Igor Stravinsky e coreografia de Serguei Diaghilev, fundador do icônico Ballet Russe. em polvorosa. Exaltado, o público se dividida entre vaias e “bravôs”
O figurino explicita o embate. Os primeiros que deixam a plateia, horrorizados com as inovações estilísticas, são senhores e senhoras vestidos com as roupas típicas do século XIX. Um homem mais velho portanto uma cartola desce a escada do teatro enfurecido. A cartola é um acessório que se popularizou entre a burguesia industrial inglesa. Sua forma remete às chaminés de suas fábricas. Chanel, de ombros à mostra, é vez ou outra focalizada em meio a audiência enlouquecida. Ela parece apenas observar de camarote, e com o olhar sarcástico, o eminente conflito de paradigmas ali explícitos. E ela já estava acima dele.
Sem Stravinsky não existiria o rock progressivo. Sem o Balé Russe não existiria a dança contemporânea. Graças também ao Ballet Russe, Yves Saint Laurent teve inspiração para uma coleção histórica. E à Chanel devemos, no mínimo, nossas calças compridas. Assim, pouco a pouco, a construção da história vai ganhando os tijolinhos da vanguarda.
Como diria a Jout, Jout, “pode estar acontecendo com você”. As mudanças de comportamento nos abocanham sorrateiramente.
No filme “A Trégua” (primeira produção argentina a concorrer ao Oscar de Melhor Filme Estrangeiro) no segundo “plot” o protagonista vivido por Héctor Alterio (o Ricardo Darín do seu tempo) comenta com a namorada sobre um colega de trabalho, alvo constante de bullying, que acabara de ser demitido em função de uma brincadeira de mau gosto inventada coletivamente. “Acho que fazemos isso sem perceber. No fundo é uma maneira de tirá-lo do caminho, para que não nos incomode. Para que não sonhe em voz alta”, confessa.
É comum rotular o colega de “louco”, “retardado”, “figura”… para sintetizar e deixar pra lá rapidamente a incompreensão com a liberdade de ser alheia, por vezes somente incompreensível, por vezes incômoda. E se essa pessoa for a portadora de um comportamento futuro? Talvez mais evoluído? O novo pode assustar. Muito. Principalmente quando ele destapa o elefante da sala de jantar, onde as pessoas “estão ocupadas em nascer e morrer”.
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