Os anos 1990 estão de volta. Tive um déjà vu quando vi em um editoral recente um vestido-camisola de alcinhas combinado com um coturno. Ares góticos.
Além do gótico e do grunge, a década foi marcada pelo contraponto "ostentação" da logomania. A tendência dominou a moda do colégio particular onde estudei, localizado na região conhecida à boca pequena como "Vale Encantado do Rio Pinheiros"*.
Entre os colegas haviam os góticos, mas diferente do clichê cinematográfico, eles eram convidados para as festas. Conviviam com os mauricinhos, patricinhas (antecessores do coxinhas), com os hippies e com os nerds. O desafio comum entre as tribos era lidar com o rigor da escola.
Com o dólar do pós-plano real (1 pra 1) o colégio, que não tinha uniforme, se tornou um desfile de peças da Hard Rock Café, Planet Holywood, GAP e Banana Republic. Diferente de hoje (quando as camisetas da Hollister, da Abercrombie & Fitch, bolsas da Goyard ou da Vuitton, são compradas pela internet) vestir uma peça com o logotipo era a prova cabal da viagem ao exterior ou de parentes abastados.
Exteriorizei meus desejos de consumo na hora do jantar. Meu pai pediu que o verbo "comprar" não fosse mais conjugado naquela casa e disse:
- "O Ayrton Senna e o Alain Prost ganham milhões para usar os logotipos nos bonés e nos macacões da Fórmula 1 e você quer pagar caro para fazer propaganda para os outros"?
O argumento não foi forte o bastante. Tinha como trunfo e moeda de troca a promessa de um belo presente para celebrar os míticos 15 anos. Pedi a viagem pra Disney. A contrapartida para o esforço financeiro e para a subversão dos valores morais aos quais meus pais teriam de se submeter para atender meu ao pedido foi: tirar notas boas e "passar direto" em todos os anos do ginásio.
Enquanto sonhava com a viagem, passei a frequentar o "achados e perdidos" da escola. Ia para lá nos últimos minutos do recreio ter momentos descompressão. A obrigação de socializar era muito forte na adolescência, e por vezes não me sentia muito a vontade. Ficava imaginando quem eram os donos dos artigos deixados para trás. Me intrigava o fato dos moletons tão cobiçados morarem ali por meses a fio. Uns com tanto, outros com tão pouco. No
"Achados e Perdidos" aprendi a geopolítica do meu microcosmos na prática.
Durante alguns dias vasculhando os itens fiquei de olho em um moletom. A dona certamente era uma menina. Havia muito rosa-choque na paleta do contorno de cores que emoldurava o Mickey. O conceito genderneutral nem sonhava em existir. Cor-de-rosa era para as garotas. Por um triz não cometi um pequeno crime. No "Vale Encantado" todo mundo se conhece. A chance da esquecida me pegar no flagra era grande e o medo falou mais alto.
Se tivesse instragram na sétima série poderia ter vestido o moletom e pedido para a bedel fazer uma foto. Teria consumido a minha peça-desejo por alguns instantes e ficaria satisfeita. As redes sociais têm o benefício de reduzir a vontade de consumir à mostrar e postar.
Na mesma época cometi de fato um delito. Fui pega passando cola na prova de biologia e tirei zero. Milhas a menos rumo a Disney. Minha colega e eu fomos levadas à diretora suprema, cujo apelido remetia ao líder nazista. O pânico tomou conta de nós. Ela nos perguntou o que prestaríamos no vestibular. Pensava em Direito. Ela logo questionou:
- "Que espécie de advogada você vai ser agindo desta maneira aos 13 anos"?
Quando soube do incidente minha mãe conteve a risada e disse:
- "Racha de estudar e recupera".
Graças a esta prova continuo sabendo quais são as células dos Poríferos, família das esponjas-do-mar.
Embarquei para a Disney no começo de dezembro do ano seguinte, em uma excursão da agência "Stella Barros Turismo". Mas, não sem antes ler "aprovada" no mural da escola. A viagem foi divertida e dos parques relacionados ao cinema tenho as lembranças mais fortes.
A moda das peças gringas logotipadas seguiu colegial adentro. Roupas da "Warner Bros" e da "Big Johnson" fizeram o "Hard Rock Café" cair no ostracismo. Meu inglês já era suficiente para ler a "The Face" e a "i-D", disponíveis na biblioteca da Cultura Inglesa. A rebeldia da Kate Moss, do McQueen e do Nick Knight se tornaram mais intrigantes do que as comportadas páginas da Capricho (estou curiosa para ler o livro "Champagne Supernova" - título de uma música do Oasis - que retoma esse período).
Os anos do ensino médio coincidiram com as primeiras edições do Morumbi Fashion (futuro SPFW) e com o auge do Mercado Mundo Mix. Os desfiles da M.Officer e da Forum no Morumbi Fashion eram fascinantes. Vera Fischer, diva, usando um vestido preto estampado por uma rosa é uma imagem forte da época. Período de muitos sonhos na moda brasileira.
Em pouco tempo as compras da Disney cederam lugar nas gavetas às peças das grifes brasileiras em voga, como Triton, Doc Dog, e pelos garimpos do Mundo Mix (camiseta do Marcelo Sommer, ou da "Escola de Divinos") - mas, claro, não sem antes negociar as contrapartidas das aquisições com os meus pais.
Na animação "Divertida Mente", meu filme favorito de 2015, a destruição das ilhas de interesse e a substituição do painel de controle do cérebro da Riley, uma menina de 11 anos, representam o seu amadurecimento. No livro "Desonra", J.M. Coetzee, escreveu: "os rituais facilitam as coisas". O enredo do livro e o momento em que ele usa esta frase não têm absolutamente nada a ver com este post, mas a síntese que conseguiu com esta combinação de palavras é no mínimo didática.
Os 15 anos e a passagem para o ensino médio de fato mudaram o painel de controle. A viagem foi a despedida da infância e serviu para entender que possuir essa ou aquela coisa não mudaria minha personalidade.
Na travessura da cola segui reincidente. Há momentos que ainda sinto que estou me arriscando para ajudar o colega menos esforçado. Compartilhar conhecimento por vezes é um adorável delito.
***
nota:
*O colega que reivindica a autoria da expressão contou que sua inspiração veio do desenho "Em Busca do Vale Encantado". O filme é protagonizado por dinossauros e na terra prometida dos répteis gigantes todos os habitantes são herbívoros.
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