a roupa de baixo


Revista Stylist ed.118

Mad Men estava na quarta temporada quando a figurinista Janie Bryant publicou o livro "The Fashion File" (2010). Naquele ano, a série se consolidara como uma grande influencia para o mundo da moda, e a personagem de Joan Harris, vivida por Christina Hendrix, foi definitiva para encorajar ainda mais as mulheres a mostrarem suas curvas sem restrições.


A moda criada nos anos 1960 é a mais revolucionária do século passado. Minissaia, geometria, tecidos sintéticos, e bastante ousadia no design das roupas, cujas formas flertaram bastante com a arquitetura. Sempre acho uma delícia ver coleções atuais que referenciam o período de alguma maneira.

Mad Men era a minha série favorita. Enrolei para ver a última temporada porque não queria que acabasse. Adoro séries que têm a história do mundo (especialmente do século XX) como pano de fundo da trama, e em Mad Men, isso era feito de um jeito primoroso.

 
Janie Bryant no acervo de Mad Men

O figurino chamou a atenção do público desde a primeira temporada. Janye Bryant aproveitou o hype e lançou seu guia de estilo. As dicas que ela dá são as mesmas de vários outros: como montar um guarda-roupa funcional, as peças básicas, etc, etc. O divertido mesmo é descobrir sobre o processo criativo de Mad Men.

The Fashion File

Ela dá as dicas de estilo fazendo um paralelo com sua metodologia para desenvolver o figurino da série. January Jones, a Betty Draper, depois Francis, assina o prefácio e revela que a sala de figurino era um túnel do tempo e portal de entrada para o personagem.



ilustrações  fofas do livro

Ao longo do texto é possível notar que a figurinista se preocupa em relevar os mínimos detalhes, como dicas de arquitetura e iluminação para seu closet. Nada de luz branca! A espacialidade, a disposição, e o acesso (fácil ou difícil) às roupas e aos acessórios no seu armário influenciam muito, segundo ela,  no seu estilo.

Coleção da Banana Republic inspirada em Mad Men, 2011

 
linha de maquiagem da Estée Lauder inspirada em Mad Men 2011

No entanto, uma das dicas mais preciosas e repetida várias vezes pela autora é a necessidade de investir em uma boa roupa de baixo (ou underwear na versão gourmet). Para ela, a lingerie, no caso das mulheres, foi parte fundamental do figurino da ficção e, o mesmo deve acontecer "na vida real". Mesmo quando não aparecia em cena toda roupa íntima dos personagens de Mad Men era "de época". Bryant afirma que este detalhe fez TODA a diferença na atuação dos atores. "Faz com que o ator se sinta mais no personagem e tenha outra postura". Não é a toa que a Betty sempre usa aqueles sutiãs pontudos, e a Joan tem aquela silhueta de ampulheta graças as combinações. Sem mencionar as cuecas samba-canção brancas do Don Draper.

 
publicidade de sutiã dos anos 1960 (fonte: WWD)


 

 
Peggy usando um sutiã da época.

Assim como na vida,  é difícil perceber que é um detalhe aparentemente irrelevante o elemento estruturador de alguma empreitada de sucesso. Uma série como Mad Men, certamente deu certo porque havia uma "roupa de baixo" bem pensada. Não apenas o figurino, ou a direção, mas uma estratégia de produção, cronograma estruturado e respeitado, espaço para cada área desenvolver seu trabalho com excelência (um orçamento gordo, vale ressaltar) e, principalmente, um roteiro excelente, que é a base de tudo.

Na minha recente imersão pelo mundo da arquitetura, passei a perceber melhor a qualidade das construções observei muitas rachaduras nas paredes nos lugares por onde andei. Um problema comum cuja manutenção trabalhosa é constantemente protelada. De pouquinho em pouquinho as fendas vão se alargando, e o momento de consertar só é percebido quando a parede já desabou, ou está prestes a desabar, abalando uma estrutura ainda maior. A recuperação é cara. Infiltrações são boas metáforas para os abalos nas relações, e até para a situação político-econômica do país atualmente, uma somatória de infiltrações históricas mal resolvidas desde a colonização, no caso.

Em Mad Men, vemos o contrário. Desde a preocupação com a lingerie, a obra como um todo, estava em constante manutenção e atualização.  Os detalhes do figurino e da direção de arte ajudaram muito no processo de sedução da série. Eles contextualizavam sutilmente o período histórico, e assim construíam a verossimilhança necessária para causar a sensação de identificação do espectador. Exemplos: Don Draper lendo o "Complexo de Portnoy", polêmico livro de Philip Roth, lançado em 1967, e outros livros do momento; o letreiro de um filme da época na rua; capas dos jornais e revistas da época sobre a mesa dos chefes; músicas de fundo de hits da época nos restaurantes que os personagens frequentam.



O personagem poderia não estar lendo nada, porque o fato dele estar segurando o livro não influi na sua cena. A rua poderia estar apenas movimentada, sem o letreiro do cinema. São minúcias que preenchem e satisfazem nosso imaginário silenciosamente e foram muito bem calculadas por uma pesquisa histórica parruda e vasto conhecimento dos roteiristas.

A série feita com tanto esmero, conta a história de um homem que leva a vida criando e cultivando suas rachaduras. E você leva algum tempo para perceber a farsa. Ele fala bem, é bonito, bem relacionado, e ao longo das temporadas vai se revelando uma pessoa digna de pena. Porque seu discurso é incoerente com suas ações práticas (a pessoa é o que faz não o que fala, ou manda por mensagem de whatsapp #mantra). Don Draper é o reflexo da ascensão do poder do mercado publicitário nos Estados Unidos e da cultura do "aparecer", do sucesso sem esforço, pelo consumo, pelo lobby. Na vida pessoal ele é incapaz de fazer escolhas. Quer tudo, está em tudo, mas não se aprofunda em nada, vive procurando sarna para se coçar e não enfrentar seus próprios dramas. Mad Men é uma espécie de manual de instruções para a nossa sociedade de consumo. E assim são as boas obras de dramaturgia (e de arte em geral), além de entreter, fazem refletir e nos ensinam um pouco sobre o mundo.

E se não fosse a lingerie sabiamente escolhida pela Janie Bryant, talvez Mad Men não tivesse tanto sucesso. Dizem que "Deus está nos detalhes", né? Ou, talvez, na roupa de baixo.



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